A aquarela Negro feiticeiro (abaixo), de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que não foi litografada em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicado na França entre 1834 e 1839, chama a atenção pela mistura de referências e pelo tema pouco abordado pelo pintor francês em suas obras. "Esse homem, cujo nome se perdeu, esboça no chão de terra um 'círculo mágico' com a ponta de seu bastão, ainda sem o pentagrama dos bruxos. Trajado com tricórnio, sobrecasaca azul, branca e amarela, colete, culotes, meias três quartos de seda e sapato de fivela, é uma figura que prenuncia a elegância de um mestre escola contemporâneo. No necromante, cuja personalidade patente causa ainda viva impressão, estão reunidas as aparências de um enciclopedista com o oculto, a ciência e a superstição que permitiram o sucesso de um conde Cagliostro ou de um Casanova, personagens que deixaram provavelmente forte impressão em um jovem Debret na Paris do Setecentos. Debret percebe com seu retrato uma alegoria brasileira: a vontade de pertencer à Europa, à modernidade. Seus trajes são fantasias europeizadas que encobrem os continentes culturais permeados pelo Império luso: África, Índia e China", escreveu o pesquisador Julio Bandeira no capítulo "Debret: retratos da Corte, da rua e autorretratos" (in. Gosto Neoclássico - Atores e práticas artísticas no Brasil do século XIX. Organização: Ana Pessoa, Margareth da Silva Pereira e Karolyna Koppke. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2019).

Negro feiticeiro

No desenho de Debret, o "feiticeiro", além de muito bem vestido, traça um círculo no chão que remete a formas de magia. "Nas chamadas religiões afro-brasileiras, pontos riscados são diagramas rituais que possuem diversas funções. Já há algumas décadas, os pontos são muito associados com, embora não sejam exclusivos da, Umbanda. Trata-se de uma religião fortemente baseada em cultos centro-africanos aos ancestrais, mas que, dependo do terreiro, incorpora também e em variadas medidas elementos da religião iorubá dos orixás, oriunda da África Ocidental; de religiões e práticas mágicas europeias; de religiões ameríndias etc.", escreveu Arthur Valle, professor de História da Arte, em seu artigo "Historicizando os pontos riscados" (19&20, Rio de Janeiro, v. XVI, n. 1, jan.-jun. 2021). "Também parece remontar a tempos pré-republicanos a prática, muito associada aos pontos, de desenhar no chão diagramas mágicos. Normalmente interpretado nesse sentido é um pequeno desenho aquarelado feito por Jean-Baptiste Debret, datado de 1828, que há algumas décadas é intitulado 'Negro feiticeiro'. (...) A hipótese de que o homem seja um 'feiticeiro' parece se basear nesse seu gesto, uma vez que, em muitos ramos da magia ritual, praticantes desenham círculos mágicos que supostamente contêm energia, formam um espaço sagrado e/ou fornecem uma forma de proteção mágica. Porém, na ausência de outras evidências, julgo difícil ter certeza se o personagem de Debret era de fato um 'feiticeiro' e, caso fosse, em que medida seu gesto dialogava com heranças africanas", acrescentou Valle.

Négresses allant a l´église, pour être baptisées / Chevaliers du Christ, en grand costume de l´ordre

Já o historiador Eduardo Possidonio, em seu texto Caminhos do sagrado: ritos centro-africanos e a construção da religiosidade afro-brasileira no Rio de janeiro do oitocentos (Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020), defende que o olhar estrangeiro nem sempre compreendia as práticas religiosas africanas misturadas às católicas, que ocorriam com frequência nas ruas da capital. "Em um desses momentos, Debret captou o que chamou de Negras novas levadas ao batismo, o que naturalmente compreendeu como momento em que africanas recém desembarcadas na corte seriam levadas à pia batismal, visando seguir os princípios católicos. (...) Entretanto causa profunda estranheza a vestimenta escolhida para a cerimônia de batismo. Destoava por completo dos costumes da época, do padrão de roupas para a entrada em uma celebração católica", escreveu. De fato, na gravura acima, vemos as jovens com as cabeças raspadas, prática a que eram submetidas as pessoas que chegavam da África, mas com os ombros de fora, vestidos relativamente curtos e colares no pescoço. Para o pesquisador, a cena seria "um já ressignificado processo de inicialização nas religiões tradicionais afro cariocas", que reuniria a introdução aos costumes das religiões de origem africana com a visita e o batismo na igreja católica. Além disso, ele também estabelece um paralelo entre essas duas imagens de Debret, a do feiticeiro e a do homem que acompanha as jovens à igreja, os dois com um bastão na mão, e nobres sacerdotes chamados de mani Vunda e kitomi da África centro-ocidental, mais especificamente do Congo do século XVI, quando o catolicismo, levado pelos portugueses, já havia se misturado com as religiões locais.