Entre as inúmeras atividades exercidas pela população escravizada no Brasil, carregar água era, ao mesmo tempo, uma das mais imprescindíveis e desvalorizadas. Uma casa com torneira era muito rara até meados do século XIX, apenas prédios públicos e alguns religiosos podiam contar com essa regalia. Fosse para levar de graça a água às casas onde viviam, ou para prestar um serviço com um pequeno ganho, homens e mulheres com jarros de água na cabeça faziam parte da paisagem das cidades.

Nº 15 Preto vendendo agôa
Nº 30 Preta vendendo agôa

"O serviço de carregamento mais comum e claramente o de status mais baixo era o de água e dejetos. Uma vez que a maior parte da água potável tinha de vir de fora das casas, cada família mandava seus escravos em busca do suprimento diário de água, ou alugava outros para buscá-la. Antes da chegada da corte portuguesa, as escravas supriam os lares; mas com o crescimento da demanda por água na cidade, até mesmo os brancos pobres já tinham entrado no negócio por volta de 1819. Porém, eram uma minoria, pois o ofício era dominado por homens africanos, que podiam carregar sobre suas cabeças barris com quinze ou dezesseis galões de água, ou puxar um grande tonel sobre uma carroça. Mas as escravas continuaram a buscar água para famílias pequenas", escreveu a historiadora norte-americana Mary C. Karasch, em A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850) (Companhia das Letras, São Paulo, 2000).

Vendedor de água (atribuído)

A população escravizada era responsável por carregar tudo na cidade. Os carregamentos que davam mais dinheiro aos que trabalhavam por conta própria, os chamados "negros de ganho", eram os dos estivadores, que transportavam as mercadorias que chegavam ao porto. Os menos favorecidos eram os que carregavam a água e principalmente os dejetos da população. Como escreve o geógrafo e pesquisador Renato Coimbra Frias, em sua tese Abastecimento de água no Rio de Janeiro joanino: uma geografia do passado (UFRJ, 2013), "(...) devido à pouca profundidade do lençol freático, a construção de fossas sanitárias era proibida. A urina e as fezes dos moradores, recolhidas durante a noite, eram transportadas de manhã para serem despejadas no mar por escravos que carregavam grandes tonéis de excrementos nas costas".

Chafariz da Carioca e Convento de S. Antônio

O Rio de Janeiro foi fundado, em 1565, com a intenção de ter a melhor posição para visualizar e controlar uma eventual invasão marítima e proteger o território cobiçado principalmente pelos franceses, que iam buscar pau brasil. Mas o local escolhido para a cidade não era farto em água doce. Assim, o Rio Carioca foi durante muito tempo o responsável pelo principal abastecimento da água utilizada pelos moradores. Antes da construção improvisada do aqueduto (hoje Arcos da Lapa) e do Chafariz da Carioca (acima), em 1723, todos tinham que ir até a margem do rio para conseguir água potável, o que significava caminhar ao menos 2 quilômetros. O aqueduto foi reformado algumas vezes e dele começaram a derivar encanamentos para abastecer outros pontos da cidade, como o chafariz da Praça do Carmo, do Caminho de Matacavalos, do Caminho da Glória, dos Marrecos, do Catumbi e do Largo do Moura, todos construídos ainda no século XVIII.

Fontaine du Campo Depuis l'Eglise de St. Anne

Com a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, o problema da escassez de água potável se agravou. A população da cidade aumentou mais de 30%, sendo que a de escravizados triplicou e, graças a eles, a capital da corte continuou com acesso à água para beber, cozinhar e lavar. Mais quatro chafarizes foram construídos após a chegada de D. João VI (1767-1826): o do Campo de Santana (acima), do Catumbi, da rua Riachuelo e do Largo do Machado. Essas fontes de água da cidade se tornaram cada vez mais um ponto de encontro dos escravizados, onde podiam socializar, trocar informações e também arrumar alguns trabalhos, no caso dos que viviam de ganho. A disputa pela água às vezes causava confusão, como mostra a gravura (abaixo) do artista alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858).

Porteus d’eau