O rio Madeira, que percorre 3.315 km desde sua nascente na base dos Andes, na Bolívia, onde tem o nome de Beni, até desembocar no rio Amazonas, enfrenta este ano a maior seca de sua história. Reservatório da maior diversidade de peixes da bacia amazônica e importante via de transporte na Região Norte do país, o Madeira está ameaçado por fatores como a crise climática, a agropecuária, o desmatamento, a mineração e as hidrelétricas.
Desde o século XVIII, esse rio foi uma via importante para a integração do país e para o escoamento de ouro e outros produtos para o litoral. No século seguinte, o engenheiro e desenhista alemão Franz Keller-Leuzinger (1835-1890) e seu pai, Joseph Keller (1811-1877), iniciaram, a pedido de D. Pedro II (1825-1891), em 1867, uma expedição para estudar melhorias na navegação no rio Madeira e a possibilidade de construir em sua proximidade uma ferrovia que facilitaria ainda mais o transporte de mercadorias como a borracha, o cacau e o tabaco, explorados naquela região e exportados para outros países.
O rio que Keller-Leuzinger levou mais de um ano para percorrer, partindo de sua foz no Amazonas, não era o mesmo rio que vemos hoje nas fotos da seca. O alemão chegou a se dizer entediado com a paisagem tão verde: "O curso inferior do rio Madeira apresenta no decorrer de mais de uma centena de milhas geográficas um cenário de grande simplicidade e, deve-se reconhecer, monotonia, que, por mais magnífica que às vezes possa parecer, cansa os olhos e pesa no coração. Calmaria morta que se reflete nas águas mansas, estas correm como um espelho refletindo o sol incandescente até onde a vista alcança, por entre dois paredões verdes e o firmamento acima", como escreveu em seu livro Os Rios Amazonas e Madeira - Esboços e Relatos de um Explorador (Tradução Adriano Gonçalves Feitosa, Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021). São da primeira edição do livro, publicada em 1874 na Alemanha, as ilustrações deste artigo e que agora integram esta plataforma.
A parte monótona que o engenheiro descreveu ficava entre a foz do Madeira no Amazonas e sua primeira cachoeira, a de Teotônio (acima), hoje extinta após a instalação da hidrelétrica de Santo Antônio, em 2012, perto de Porto Velho, em Rondônia. A partir desse trecho a expedição passou a ser obrigada a descarregar as canoas e ultrapassar por terra as cachoeiras que se seguiam. Keller-Leuzinger elogiou a capacidade de trabalho e força dos mojos, população indígena boliviana e catequizada, contratada como remadores pela expedição. Abaixo, os remadores reunidos no café da manhã.
A caminho do próximo grande desafio, a ameaçadora corredeira chamada de Caldeirão do Inferno, a expedição se deparou com uma aldeia dos temidos indígenas caripunas. Apesar de ter sido bem-recebido e trocar presentes com eles, o explorador registrou em seu livro: "os nossos índios mojos demonstravam uma mistura de temor e indignação desdenhosa diante da selvageria desnuda dos índios caripunas (...) Se fosse possível nos próximos anos pacificar os índios caripunas, tornando-os vizinhos toleráveis aos brancos, este seria o primeiro esforço para a colonização do Alto Madeira". Na gravura abaixo, o engenheiro retratou o primeiro encontro da expedição com esses indígenas. Hoje, os caripunas se resumem a pouco mais de 50 habitantes da Terra Indígena Karipuna, nos municípios de Porto Velho e Nova Mamoré.
Entre as pessoas que encontrou durante a expedição, também foram retratados pelo engenheiro os seringueiros, que nos anos seguintes iriam ajudar a dizimar os indígenas. Abaixo, a casa de um alemão, instalado na floresta há cerca de 20 anos. "Diz-se que ele é um coletor bastante habilidoso e que, com sua esposa nativa, nos três ou quatro meses de seca, colhe mais de uma centena de arrobas (equivalente a 32 libras) de seringa, ao passo que uma família produz em média umas cinquenta arrobas", escreveu.
Talvez percebendo a biodiversidade local, Keller-Leuzinger dedicou boa parte de seu livro para discorrer sobre a alimentação dos habitantes daquela região, que, segundo ele, "têm em alta consideração a caça e a pesca muito mais do que qualquer europeu (...). Nessas províncias, tartarugas colossais, o pirarucu (Sudis gigas), o lamantim, ou peixe-boi, são pescados, assim como as antas, os porcos selvagens e os veados são caçados, não por esporte, mas por questão de sobrevivência diária dos habitantes". Na gravura abaixo, vemos a caça à tartaruga.
A expedição chegou até a Bolívia e na volta o viajante publicou, em 1869, o Relatório da Exploração do Rio Madeira na parte compreendida entre a cachoeira de Santo Antônio e a barra do Mamoré, que serviu de base para os estudos para a construção da malsucedida ferrovia Madeira-Mamoré.