Até a primeira década do século XIX, grande parte dos africanos escravizados que chegavam ao Rio de Janeiro desembarcavam na Praia do Peixe (atual Praça XV) e eram comercializados na Rua Direita (atual Primeiro de Março). O intenso fluxo de cativos na região central e nobre da cidade fez com que, em 1811, o então vice-rei do Estado do Brasil transferisse o local de desembarque para o Cais de Valongo, porto instalado na Freguesia de Santa Rita, ao norte do centro do Rio. A intenção era melhorar a logística do comércio de escravos, um dos pilares da economia brasileira, e concentrar o mercado de africanos num local mais distante dos olhos dos habitantes da cidade.

A redor do cais, que recebeu cerca de 1 milhão de africanos escravizados, foi construído um verdadeiro complexo escravista. Na rua do Valongo (atual Camerino), funcionavam as lojas de comércio de escravizados, geralmente casas térreas e espaçosas, onde os cativos eram apresentados aos potenciais compradores, como na cena registrada em Boutique de la Rue du Val-Longo, de Jean-Baptiste Debret. Na antiga rua do Cemitério, atual Pedro Ernesto, foi instalado o Cemitério dos Pretos Novos, onde os africanos que morriam durante a viagem ou logo que chegavam por aqui eram enterrados. Na mesma região, funcionava o Lazareto dos escravos, hospital que tratava os cativos com doenças quase sempre relacionadas às péssimas condições da viagem entre África e Brasil, como glaucoma, sarna, varíola e disenteria. Calcula-se que quase ¼ dos africanos que desembarcavam no Brasil estavam doentes. A poucos metros dali, na Igreja da Saúde, os escravizados recém-chegados eram batizados para suprimir a cultura e a religiosidade africanas.

Boutique de la Rue du Val-Longo

A região, que ficou conhecida como Pequena África, chamou a atenção dos artistas viajantes. No registro de Debret, litografado por Thierry Frères, os cativos, muito magros, com pouca roupa, e as crianças com barriga d’água são observados por um traficante e um comprador bem vestido. O artista francês escreveu suas impressões sobre a cena recorrente no período escravista: “Essa sala de venda, comumente silenciosa, está sempre infectada pelo miasma de óleo de rícino que exala dos poros enrugados desses esqueletos ambulantes, cujo olhar curioso, tímido ou triste, lembra o interior de uma coleção de feras. (...) Reproduzi aqui uma cena de venda. Reconhece-se pelo arranjo da loja, a simplicidade do mobiliário de um cigano de pequena fortuna, vendedor de negros recém-chegados. Dois bancos de madeira, uma poltrona velha, uma moringa (pote para água) e o chicote (espécie de gravata de couro de cavalo) suspenso ao seu lado, formam o mobiliário de seu entreposto. Nesse momento, os negros aí depositados pertencem a dois proprietários diferentes. A diferença da cor dos panos que lhes cobrem serve para distingui-los; um é amarelo e o outro vermelho escuro”. 

Em 1831, o complexo de Valongo foi desativado. A partir daí, o local, um dos pontos mais simbólicos do período escravista, foi cada vez mais descaracterizado, contribuindo para o apagamento da memória da escravidão no Brasil. Em 1843, o porto foi reformado para receber a imperatriz d. Teresa Cristina, noiva de d. Pedro II: ganhou estátuas gregas e passou a ser chamado de Cais da Imperatriz (a rua do Valongo também mudou o nome para rua da Imperatriz). No início do século XX, o cais foi aterrado e a área reurbanizada. Novamente renomeada, a atual rua Camerino foi alargada e ganhou o jardim do Valongo, decorado com as mesmas estátuas gregas do antigo cais da Imperatriz. 

Resgatando a história da escravidão

Na década de 1990, durante escavações para uma reforma de uma residência na Rua Pedro Ernesto, ossadas humanas foram encontradas e descobriu-se que ali era o local onde funcionava o Cemitério dos Pretos Novos. O sítio arqueológico foi restaurado e, baseado nele, foi construído o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), hoje reconhecido como Museu Memorial do mercado de escravizados e da diáspora africana. 

A partir de 2011, com as obras de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro, realizadas em decorrência dos Jogos Olímpicos de 2016, o movimento de recuperação da história da escravidão no local ganhou mais força. O Jardim de Valongo foi restaurado – em seus fundos está instalada a Casa da Guarda, uma das antigas casas de engorda, onde os escravizados africanos ganhavam peso e valor de mercado. Escavações na praça Jornal do Comércio trouxeram a público restos da construção do cais do Valongo, como o calçamento no estilo pé de moleque.

Todas essas descobertas motivaram a criação do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, que reúne em um roteiro os locais que remetem à vida dos africanos escravizados e de seus descendentes na região portuária.

Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o sítio arqueológico do cais do Valongo ganhou, em 2017, o título de patrimônio mundial da UNESCO e foi colocado no mesmo patamar que outros locais de memória e sofrimento, como um memorial em Hiroshima, no Japão, e o Campo de Concentração de Auschwitz, na Polônia.