Há pouco mais de uma década, cresceu nas grandes cidades brasileiras um movimento sociocultural de ocupação das ruas, com ações que intensificaram a apropriação dos espaços públicos. Entre elas, a batalha pela manutenção de praças e parques, o aumento do uso de bicicletas, as festas de rua e o crescente número de manifestações nas vias públicas. São iniciativas que traduzem o modo de vida e a estrutura da sociedade brasileira hoje. No início do século XIX não era diferente: a movimentação das ruas registrada pelos artistas viajantes revela como a sociedade se organizava. Os espaços públicos eram ocupados, sobretudo, pelos negros escravizados, enquanto as classes abastadas pouco circulavam por eles.  

Praça do Commercio Rua Direita

Depois da transferência da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, as ruas do Rio de Janeiro foram tomadas por atividades diversas para atender a demanda dos europeus. Os cativos africanos dominavam o espaço urbano ao carregar todo tipo de mercadoria, trabalhar como barbeiros, ambulantes, entregadores de recados ou vendedores de jornais. Também eram açoitados nas ruas sem nenhum constrangimento por parte de seus senhores. Havia tantos negros escravizados nas vias públicas que algumas regiões eram conhecidas como Pequena África. Na década de 1820, para se ter uma ideia, a corte contava com 38 mil escravos com uma população total de cerca de 90 mil habitantes 

Chafariz do Lagarto

No desenho do pintor cearense José dos Reis Carvalho,  que realizou uma série de trabalhos sobre costumes no Rio de Janeiro, alguns negros escravizados abastecem barris de água no Chafariz do Lagarto. Era comum vê-los carregando baldes e latas d’água de riachos, chafarizes e fontes para vender ou abastecer a casa de seus patrões já que, mesmo nas residências dos mais ricos, não havia água encanada nem esgoto. Os dejetos e a urina eram recolhidos pelos chamados tigres, homens encarregados de despejá-los no mar ou em terrenos baldios. 

Nº 30 Preta vendendo agôa
Une dame portée em caderinha, allant a la messe

O transporte era feito pelos bondes de tração animal e pelos escravizados, que levavam as pessoas em cadeirinhas ou liteiras. No desenho acima, feito por Jean-Baptiste Debret, intitulado Une dame portèe em caderinha, allant a la messe [Uma senhora carregada na cadeirinha, indo à missa], a mulher é acompanhada por seus escravos. Isso porque, no início do século XIX, as mulheres só saíam de casa ao lado do marido ou de uma negra escravizada. Depois da chegada da corte, influenciadas pela demanda europeia, as ruas do Rio de Janeiro ganharam lojas francesas de tecido e espaços de modistas. As mulheres passaram a fazer compras na ruas do Ouvidor e Direita, que também ganharam confeitarias e casas de chá. Escolas femininas surgiram, criadas por professoras francesas, alemãs e inglesas que chegavam ao Brasil. Mesmo assim, as ruas do Rio ainda eram majoritariamente ocupadas pelos mais pobres.

Dame de Rio - et sa suivante
Rua Direita, Rio de Janeiro (atribuído)
Washer-Women

Outra personagem constante nas ruas do Rio oitocentista era a lavadeira. O trabalho de lavar, passar e engomar era das escravas e de mulheres mais pobres em troca de pagamento. As roupas eram lavadas em riachos, nos arredores da cidade, ou em lavadouros. Era comum ver mulheres carregando trouxas de roupa suja na cabeça pela manhã e retornando com tudo limpo e seco no fim do dia. Como se pode ver na litografia acima, do alemão Eduard Hildebrandt, as lavadeiras entravam nos rios ou debruçavam-se sobre eles para bater a roupa em pedras. O ato era tão comum que o escritor Machado de Assis, filho de lavadeira, descreveu uma cena parecida em Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando o protagonista narra um episódio sobre seu tio João: “Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundo da chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa (...) As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redarguindo às pilhérias do tio João (...)”.